Francisco das C. Lima Filho1
“Se a escravatura não é má, nada é mau”. (ABRAHAM LINCOLN).
Mais uma vez, tivemos que assistir, pela mídia, a notícia de que indígenas das Regiões de Dourados e Amambai — estado de Mato Grosso do Sul, foram submetidos a trabalho em condições análogas às de escravo, por duas empresas do estado do Paraná.
Os resgates ocorreram por uma ação do MPT — Ministério Público do Trabalho naquele Estado, com a colaboração da Auditoria Fiscal do Trabalho e Procuradoria do Trabalho em Maringá e do Mato Grosso do Sul — unidade de Dourados.
Foram resgatados 57 trabalhadores em situação análoga à escravidão no município de Itambé — estado do Paraná: 46 originários de Mato Grosso do Sul, da etnia Guarani-Kaiowá, arregimentados e levados para trabalhar em uma usina localizada em São Pedro do Ivaí, município que dista cerca de 400 quilômetros da cidade de Curitiba.
Nesse terrível e ilícito quadro, resolvi, enquanto Coordenador Regional da Prevenção e do Combate ao Trabalho Escravo no âmbito do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região, escrever esta manifestação visando chamar a atenção das empresas e empreendedores e de toda a sociedade, mais uma vez, como tenho feito, reiteradamente, em eventos na Escola Judicial e em universidades, a exemplo do que fiz recentemente em Bataguassu e em Dourados e, mais uma vez, num artigo publicado no jornal eletrônico Capital News, em 23 de corrente mês, a respeito do racismo ambiental contra as aldeias de Dourados no que concerne à questão da falta d’água para os indígenas que habitam aquela comunidade de cerca de 20 mil pessoas.
Mas o fenômeno medieval e desumano da exploração do ser humano em condições análogas à de escravo, que insiste em se manter em pleno século XXI, e que tem como pano de fundo, a vulnerabilidade de certos segmentos da sociedade2, como os povos indígenas, os imigrantes e outros, com intuito de lucro financeiro fácil por alguns empreendedores escravagistas3, às custas da cruel exploração do ser humano, como fosse coisa ou mercadoria, fere os mais comezinhos princípios de respeito à dignidade humana e de proteção aos direitos humanos previstos no Texto Maior, nomeadamente nos arts. 1º, inciso III e 3º, inciso IV, e nos diversos Tratados de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário e que, pela chamada eficácia horizontal dos direitos humanos fundamentais, também vincula os particulares, inclusive no âmbito das relações de trabalho.
Laurentino Gomes, na sua trilogia sobre a ESCRAVIDÃO, lembra que o trabalho em situação análoga à de escravo, desgraçadamente, continua sendo uma prática comum em algumas regiões do Brasil, embora sob outra e diversa roupagem da escravidão negra, pois levada a efeito contra pessoas em condições vulneráveis, independentemente da cor, daí parecer acertada a afirmação do aludido autor no sentido de que:
Para entender como chegamos até aqui é preciso ir além da superfície, observar o que fizemos aos nossos indígenas e negros, entender quem teve acesso a oportunidades e privilégios ao longo desses últimos 500 anos e como a sociedade e a cultura brasileiras foram se moldando desde a chegada de Pedro Álvares Cabral na Bahia até os dias de hoje.
Assim entendido o conceito e a dimensão do que seja o trabalho em condições análogas às de escravo moderno, parece não existir dúvida de que a situação em que arregimentados, contratados e em que se encontravam os indígenas de Mato Grosso do Sul, no vizinho estado do Paraná, era, de fato, de verdadeiro trabalho escravo, nos termos em que tipificado pelo art. 149 do Código Penal.
Deveras, e de acordo com o órgão que procedeu os resgates antes noticiados, e pelos relatos dos próprios trabalhadores vítimas, divulgados pela mídia, foram arregimentados em três aldeias do Mato Grosso do Sul, com promessa de emprego no Paraná, sendo levados para trabalhar em uma usina localizada em São Pedro do Ivaí, Município que dista cerca de 400 quilômetros da cidade de Curitiba.
Todavia, segundo relataram, antes mesmo de chegarem ao alojamento, foram obrigados a adquirir produtos em um supermercado local, acumulando, antes mesmo de iniciar o labor, uma dívida, cujo valor seria descontado do salário, em torno de R$ 45.000,00 a evidenciar a figura da chamada servidão por dívida, prática que, de acordo com o entendimento da Juíza do Trabalho da 1ª Região, Daniela Muller4, especialista em combate ao trabalho escravo “se caracteriza por um profundo desrespeito pelo ser humano, seja por condições absolutamente precárias e aviltantes de trabalho, sem condições higiênicas, sem acesso à água, alimentação, jornadas exaustivas, que é aquela que leva o ser humano a praticamente extinguir a sua energia vital. Ou qualquer meio de coagir, de forçar aquela pessoa a fazer um serviço que ela não deseja”, como teria ocorrido com os indígenas de Mato Grosso do Sul resgatados, que eram submetidos a condições degradantes5, vivendo em alojamentos precários, sem acesso adequado à alimentação, à água potável e ao salário, laborando sem registro formal do contrato de trabalho, sendo alimentados, de forma precária, sendo certo, pelo que afirma o MPT, que o local em viviam apresentava condições insalubres, com lixo acumulado e falta de espaço suficiente para alojá-los.
Inadmissível que em pleno Século XXI, num país que se pretende plural e democrático, ainda temos que nos deparar, com situações como aquela em que se encontravam os indígenas resgatados, o demanda uma maior conscientização da sociedade, especialmente de certos empresários e empreendedores, que ainda têm essa visão medieval de exploração do ser humano como se fosse mercadoria de venda, e que merecem ser severamente sancionados com os rigores da Lei (Código Penal, art. 149), além de terem que indenizar as vítimas pelos danos causados, consistentes no pagamento de todos os direitos oriundos da prestação laboral em condições análogas às de escravo e pelo dano moral que, nessa hipótese, é presumido in re ipsa6.
Precisamos, pois, conscientizar os empreendedores e toda a sociedade quanto à ilicitude, à crueldade e à desumanidade dessa forma de exploração do ser humano, resgatando aqueles que são vítimas e, quando o forem, serem qualificados profissionalmente para que possam ser acolhidos e reinseridos no mercado de trabalho de forma livre e com salários dignos de modo a impedir que retornem a ser vítimas desse insidioso e hediondo crime.
Fica aqui o nosso mais veemente repúdio a essa medieval prática de exploração humana e o apelo às empresas e empreendedores quanto ao cumprimento de seu dever social (art., 170 da Carta de 1988), para receberem esses trabalhadores, os qualificando para que possam nelas laborar de forma livre e contribuir para o progresso do Brasil e com isso se erradicar essa “chaga cancerosa” que, infelizmente, continua a existir no Brasil, inclusive, aqui no estado de Mato Grosso do Sul.
Esperamos contar com a ajuda e a colaboração de toda a sociedade nessa difícil tarefa. Nos ajudem a mudar esse triste quadro.
Notas de rodapé:
- 1 Desembargador Diretor da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região. Coordenador Regional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do TRT da 24ª Região.
- 2 Para Flavio Higa e Ynes Felix: ”La miseria ha sido un factor determinante en la persistencia de la esclavitud y en la elección de los esclavizados. La Corte Interamericana de Derechos Humanos constató que el mayor número de víctimas del trabajo esclavo en Brasil son “trabajadores de las regiones norte y no reste, de estados que se caracterizan por ser los más pobres, con los mayores índices de analfabetismo y de empleo rural” . Asimismo, el hambre afecta a 33,1 millones de brasileños y es de color: “mientras que la seguridad alimentaria está presente en el 53,2% de los hogares en los que la persona de referencia se declara blanca, en los hogares con jefes de familia negros o morenos desciende al 35%”
- 3 De acordo com Leonardo Sakamoto: O trabalho escravo contemporâneo não é resquício de modos de produção arcaicos que sobreviveram ao capitalismo. Trata-se de um instrumento utilizado por empreendimentos para potencializar seus processos de produção e expansão. A superexploração do trabalho, da qual o trabalho escravo contemporâneo é a forma mais cruel, é deliberadamente utilizada em determinadas regiões e circunstâncias como ferramenta. Sem ela, empreendimentos atrasados não teriam a mesma capacidade de concorrer numa economia globalizada”
- 4 Entrevista disponível em: <https://cbn.globo.com>. Acesso em 23.10.2015.
- 5 O trabalho em condições degradantes assume um papel de destaque por se tratar de um modo de execução típico, porém, muito diferente do modo colonial de escravidão implementado no Brasil, visto que para a configuração da degradação é prescindível a ausência de liberdade de locomoção e a sua caracterização perpassa, sobretudo, pela supressão da dignidade dos trabalhadores e inobservância das normas trabalhistas. OLIVEIRA AIRE, Monique. Trabalho em condições degradantes: uma análise da jurisprudência do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Regi. In: Revista Publicum Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, 2017, p. 209–272. Disponível em <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/publicum>. Acesso em 23.10.2025.
- 6 No uso jurídico, in re ipsa indica que determinado dano ou consequência é presumido pela natureza do próprio fato, não exigindo prova específica do dano.